Introdução
A pandemia pelo coronavírus acometeu mais de 480 milhões de pessoas ao redor do mundo.1 Receptores de órgãos sólidos constituem um grupo altamente vulnerável devido à necessidade de imunossupressão e às várias comorbidades que podem estar associadas,2 muitas das quais persistem mesmo após a realização do transplante.3
Pacientes transplantados podem apresentar um espectro de manifestações clínicas decorrentes da COVID-19, desde assintomáticos, sintomas leves ou falência respiratória aguda e óbito.4 Alguns estudos sugerem que no caso de quadros com desfecho favorável, a imunização prévia e a imunossupressão necessária após transplante contribuem para uma resposta inflamatória menos exacerbada e, consequentemente, menor lesão orgânica.3,5 Entretanto, alguns relatos e revisões da literatura evidenciam pior prognóstico em transplantados, possivelmente devido às comorbidades, idade avançada e linfopenia frequentemente presentes.3,4,6
Dessa forma, descrevemos o caso de paciente com RT-PCR positivo para Sars-Cov-2 submetido a transplante cardíaco ortotópico bicaval com evolução satisfatória e sem sequelas respiratórias crônicas até o momento. Trata-se de um dos primeiros casos descritos submetido a transplante de coração durante vigência de COVID-19.
Descrição
Homem, 64 anos, com insuficiência cardíaca de etiologia isquêmica com fração de ejeção reduzida em classe funcional IV. Hipertenso, diabético, submetido à cirurgia de revascularização do miocárdio em 2014 e implante de cardiodesfibrilador em 2019. Havia recebido duas doses de vacina contra COVID-19, do fabricante Astrazeneca, completando o esquema em setembro de 2021. Internado em hospital terciário, foi priorizado para transplante cardíaco em uso de dobutamina e assistência circulatória com balão intra-aórtico e classificado como INTERMACS-3.7 Estava em ventilação espontânea, sem queixas respiratórias e sem necessidade de oxigenioterapia. Foi submetido a transplante cardíaco ortotópico bicaval em fevereiro de 2022 sem intercorrências cirúrgicas com tempo de isquemia total de quatro horas e 30 minutos.
No primeiro dia pós-operatório, o exame de RT-PCR para COVID-19 coletado imediatamente antes da cirurgia de acordo com protocolo institucional resultou positivo. A variante viral identificada posteriormente pelo método de sequenciamento em larga escala foi a Ômicron BA.1. Foi iniciada imunossupressão habitual com tacrolimus, micofenolato mofetil e corticosteróides. Sulfametoxazol/trimetoprima e ganciclovir foram introduzidos para profilaxias de infecções em imunossuprimidos. Para profilaxia cirúrgica foram utilizados meropenem e vancomicina por cinco dias. Seguiu-se evolução favorável com diminuição gradual de drogas vasoativas e do suporte de balão intra-aórtico até sua retirada. O paciente foi mantido em isolamento, em ventilação espontânea, em uso de cateter nasal de oxigênio a 2l/min e sem queixas respiratórias. Realizada tomografia de tórax no 12º dia de pós-operatório, com achados de aspecto atípico para pneumonia de etiologia viral. Novo RT-PCR colhido no 13º dia resultou negativo. Recebeu alta hospitalar 30 dias após o transplante.
Durante seguimento ambulatorial três meses após o transplante houve elevação de marcadores laboratoriais de rejeição ao enxerto (troponina, peptídeo natriurético atrial e proteína C reativa), porém com ausência de sintomas. Optou-se por realização de pulsoterapia com metilprednisolona. Ecocardiograma sem alterações em comparação a exame prévio, mantinha fração de ejeção de 60% e sem aumento de espessura das paredes. Biópsia endomiocárdica mostrou fragmento com infiltrado inflamatório predominantemente linfocitário perivascular e ausência de agressão ao cardiomiócito, sendo classificação ISHLT (International Society for Heart and Lung Transplantation) para rejeição celular grau zero e para rejeição humoral pAMR zero.8 Mantida imunossupressão com tacrolimus, prednisona e micofenolato mofetil, paciente evoluiu com normalização dos marcadores laboratoriais de rejeição e permaneceu assintomático.
Discussão
A necessidade de imunossupressão crônica em pacientes transplantados é fator de risco para complicações e desfecho negativo quando associada a infecções. Devido a experiência da pandemia por H1N1 em 2009, esperava-se que tais pacientes tivessem pior prognóstico quando acometidos por COVID-19, evoluindo com pneumonia e síndrome do desconforto respiratório agudo mais frequentemente do que a população geral. Porém, uma hipótese é que a imunossupressão nesses casos reduza a intensidade da síndrome hiperinflamatória secundária à tempestade de citocinas, presente na maioria dos casos de morte por coronavírus.5
Apesar de manifestações clínicas semelhantes à população geral, a mortalidade parece ser maior no grupo de pacientes transplantados cardíacos conforme demonstrado em alguns relatos de caso.9-11 Contudo, não é possível dizer se a causa de pior prognóstico está relacionada à imunossupressão ou às múltiplas comorbidades, idade avançada ou quadros infecciosos mais graves em tais pacientes.4 Há relatos de piores desfechos com infecção por COVID-19 na população geral relacionados com linfopenia,6 que também pode estar presente nos pacientes transplantados devido a efeito colateral de medicações imunosupressoras. Além disso, o prognóstico também se mostrou pior quando há elevação de biomarcadores como proteína C reativa e procalcitonina, tanto na população geral quanto nos pacientes transplantados.12,13
O manejo dos imunossupressores nesses casos deve ser individualizado, pesando-se o risco de piora infecciosa e o risco de rejeição ao enxerto. Ballout et al.,4 elaboraram um fluxograma para guiar a imunossupressão em pacientes transplantados cardíacos que apresentaram COVID-19: manutenção de micofenolato mofetil em doses mais baixas caso o paciente não apresentasse linfopenia ou sinais de infecção grave; inibidores da calcineurina foram mantidos em faixa terapêutica e prednisona também foi utilizada, exceto quando houvesse indicação do uso de dexametasona (nesses casos, a prednisona foi suspensa durante tratamento com dexametasona). Além disso, se o paciente apresentasse elevação de marcadores de rejeição e enzimas cardíacas, recomendou-se a realização de biópsia endomiocárdica a fim do diagnóstico diferencial entre rejeição ao enxerto e miocardite viral por COVID-19.4
Em revisão da literatura, alguns autores concluíram que a resposta imune inata nos pacientes transplantados cardíacos deva ser parecida à da população geral, com níveis semelhantes de marcadores inflamatórios e interleucina-6 em ambos os grupos de pacientes hospitalizados. Em relação à resposta humoral, também se notou que a formação de anticorpos foi semelhante entre os pacientes transplantados e os não transplantados, sendo que anticorpos específicos foram identificados após uma a duas semanas do início dos sintomas e permaneceram por um período médio de dois meses, podendo chegar até seis meses.14
Em outro estudo com 232 pacientes concluiu-se que a formação de anticorpos contra Sars-Cov-2 em imunossuprimidos foi semelhante ao que se observa na população geral, bem como a taxa de infecção entre os dois grupos. Entretanto, neste estudo, pacientes transplantados evoluíram com pior desfecho, possivelmente devido à presença de múltiplas comorbidades associadas.15
Outro fator que pode ter contribuído para o controle da resposta inflamatória e evolução favorável foi a completude do esquema vacinal à época com uma vacina previamente testada e com eficácia comprovada. Como já mencionado, a despeito da imunossupressão, pacientes transplantados cardíacos têm resposta imune semelhante à população geral quando infectados pelo coronavírus.15 Dessa forma, mesmo com a manutenção da imunossupressão, o paciente em questão provavelmente ainda mantinha concentrações de anticorpos específicos, o que pode ter contribuído para o desfecho satisfatório. No caso exposto, o principal diferencial consistiu na vacinação prévia do paciente, o que não foi relatado nos estudos descritos pois as várias vacinas hoje disponíveis ainda se encontravam em fase de desenvolvimento.
Outro ponto ainda a ser elucidado em outros estudos e amostras maiores de pacientes consiste em entendermos como o Sars-Cov-2 pode afetar a função do enxerto e eventualmente causar rejeição uma vez que já é amplamente descrito que o vírus possui tropismo por células cardíacas podendo causar injúria miocárdica e miocardite.
Conclusão
Descrevemos um caso de paciente submetido a transplante cardíaco em vigência de COVID-19 e previamente vacinado, com evolução satisfatória. O manejo da imunossupressão deve ser considerado de forma individual nesse cenário. Para a tomada de decisões clínicas, o risco de rejeição do enxerto com piora da doença que indicou o transplante deve ser levado em conta frente à gravidade da infecção quando associada à inflamação sistêmica exacerbada.
Footnotes
Vinculação acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
Aprovação ética e consentimento informado
Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
Fontes de financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Referências
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