As doenças cardiovasculares representam a principal causa de mortalidade da população adulta, tanto no Brasil quanto globalmente. A mortalidade proporcional por essas doenças no Brasil é de aproximadamente 27%.1 As alterações cardiovasculares se tornam objeto de enorme preocupação para os pacientes que serão submetidos a procedimentos cirúrgicos, momento em que o organismo é exposto a alto nível de estresse metabólico e, dessa forma, complicações cardiovasculares podem se sobrepor com desfechos desfavoráveis. No mundo, estima-se que anualmente cerca de 900 mil pacientes submetidos a cirurgias evoluam com complicações cardíacas relacionadas diretamente ao ato cirúrgico.2 Neste contexto, o período perioperatório e, portanto, as alterações fisiológicas secundárias ao trauma cirúrgico são, isoladamente, um fator de risco para a manifestação de doenças cardiovasculares.
No Brasil, são realizadas entre 2 e 3 milhões de cirurgias por ano de acordo com o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS).3 A grandeza dos números reitera a importância da realização de um preparo pré-operatório pormenorizado para que sejam minimizados os riscos relativos ao procedimento cirúrgico, incluindo a avaliação cardiológica.
Dentre os exames complementares para avaliação pré-operatória cardiovascular, o eletrocardiograma (ECG) apresenta características de destaque, principalmente por ser um exame simples, não invasivo, barato, facilmente disponível e com interpretação relativamente simples por profissionais treinados. Por essas razões, o ECG se torna um importante instrumento diagnóstico na detecção de condições cardiovasculares em desenvolvimento ou já instaladas. A relevância do ECG como exame pré-operatório é reconhecida em grandes diretrizes aplicadas mundialmente, como a classificação de risco cirúrgico da American Society of Anesthesiologists (ASA),4 a American College of Cardiology / American Heart Association (ACC/AHA)5 e o European Society of Cardiology (ESC).6
A relação entre achados do ECG e os eventos adversos perioperatórios é classicamente descrita, incluindo anormalidades no traçado que podem predizer complicações cardíacas como infarto agudo do miocárdio e arritmias, ajudando na adoção de estratégias preventivas perioperatórias como a possibilidade de intervenções coronarianas precoces, controle medicamentoso e evitando eventos mais graves durante a anestesia.7
Importante ressaltar que a relevância do ECG varia de acordo com o tipo de cirurgia a ser realizada. Em procedimentos cirúrgicos de grande porte, como cirurgias cardiovasculares e para pacientes de alto risco cardiovascular, o ECG desempenha um papel crítico na avaliação pré-operatória, pois essas cirurgias estão mais associadas a eventos cardíacos adversos.4-6
Entretanto, o consenso da European Society of Cardiology recomenda a dispensa do ECG na avaliação pré-operatória cardiovascular de pacientes com idade inferior a 65 anos, sem fatores de risco cardiovasculares e que serão submetidos a procedimentos de baixo risco.6,7 Evidências atuais demonstram que a realização do ECG pré-operatório, nessas condições, não tem influência em reduzir a mortalidade perioperatória, além de ocasionar um aumento ao custo total do tratamento, não de forma direta, mas como um efeito em cadeia da sua sobreutilização, o que se apresenta em acordo com artigo “Importância Prognóstica Do Eletrocardiograma Pré-Operatório Em Pacientes De Baixo Risco Submetidos À Intervenção Cirúrgica Sob Anestesia Geral” publicado nesta edição.8,9
Deve-se ressaltar que a avaliação médica perioperatória deve ser realizada de forma individualizada e minuciosa, incluindo anamnese e exame clínico completos, não dispensando a realização de diversos exames complementares. Por vezes, o ECG pré-operatório ainda pode servir como padrão de comparação na ocorrência de alterações de traçado no perioperatório, em situações nas quais não exista uma alteração eletrocardiográfica prévia. Deve-se lembrar, contudo, que existem alterações do ECG que nem sempre se correlacionam com alterações cardíacas estruturais, sendo muitas vezes benignas em alguns subgrupos de pacientes, como os bloqueios atrioventriculares de 1° grau, bloqueios de condução intraventricular, bloqueios de ramo direito e bloqueios da divisão anterossuperior do ramo esquerdo, o que pode reforçar as conclusões dos autores já citados.10
Finalmente, a medicina baseada em evidências deve ser um baluarte na tomada de decisão e, nesse sentido, estudos com populações específicas podem apresentar limitações quando se propõe a tentativa de extrapolação para populações gerais.6,9 Porém, podem indicar o começo para a mudança de alguns paradigmas.
Footnotes
Minieditorial referente ao artigo: Importância Prognóstica do Eletrocardiograma Pré-Operatório em Pacientes de Baixo Risco Submetidos à Intervenção Cirúrgica sob Anestesia Geral
Referências
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