RESUMO
No Brasil, o direito à saúde pleiteado pelos povos indígenas dialoga com diferentes marcos regulatórios, incluindo a Declaração de Alma-Ata, a qual propõe e valoriza a atenção primária à saúde (APS) como promotora de maior acesso e forma de minimizar as desigualdades em saúde. No âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o subsistema de atenção à saúde indígena (SASI) e a Política de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) foram criados como estratégia para garantir o acesso à saúde aos povos indígenas. A PNASPI prevê atenção diferenciada às populações indígenas com base na diversidade sociocultural e nas particularidades epidemiológicas e logísticas desses povos e focando no desenvolvimento da APS com garantia de integralidade da assistência. O presente artigo traz reflexões acerca da implementação da PNASPI, destacando os avanços e desafios apresentados durante esse percurso. Apesar dos crescentes recursos financeiros disponibilizados para implementar o subsistema de saúde indígena, as ações têm apresentado poucos resultados nos indicadores de saúde, que refletem desigualdades historicamente descritas entre esses povos e os demais segmentos. A participação social ainda se mantém frágil, e suas discussões refletem a insatisfação dos usuários. A descontinuidade do cuidado somada à carência e alta rotatividade de profissionais, assim como a necessidade de estabelecer diálogos interculturais que promovam a articulação com saberes tradicionais, são fatores que desafiam a efetividade da PNASPI. O cuidado ainda é centrado em práticas paliativas e emergenciais, geralmente baseado na remoção de pacientes, gerando altos custos. A superação desses desafios depende do fortalecimento da APS e de seu reconhecimento enquanto importante marco regulador do modelo organizacional da PNASPI.
Palavras-chave: Atenção primária à saúde, saúde de populações indígenas, população indígena, Brasil
ABSTRACT
In Brazil, the right to health claimed by indigenous peoples interacts with various regulatory milestones, including the Alma-Ata Declaration, which proposes and highlights primary health care (PHC) as a means to increase access and minimize health inequalities. As part of the Brazilian Unified Health System (SUS), an indigenous health subsystem (SASI) was established, along with a National Policy for the Care of Indigenous Peoples (PNASPI), as a strategy to ensure health care access for these populations. PNASPI aims to provide differentiated health care to indigenous populations, considering the sociocultural diversity and the epidemiological and logistic peculiarities associated with the care of these peoples and focusing on the provision of comprehensive care. The present article discusses the implementation of PNASPI, highlighting achievements and challenges faced during this process. Despite the growing financial resources made available for the implementation of the indigenous health subsystem, the initiatives developed thus far have had little impact on health indicators, which reflect historical inequalities in relation to other population segments. Indigenous social control is still fragile, and the discussions in this arena show the dissatisfaction of users toward the system. The discontinuity of care, added to the shortage of and high turnover of health care workers and the need to establish intercultural dialogues that promote articulation with traditional knowledges, challenge the effectiveness of PNASPI. Care is still centered on palliative and emergency measures, usually based on relocation of patients for treatment, which is associated with high cost. To overcome these challenges, PHC must be strengthened and recognized as a regulatory milestone by the PNASPI organizational model.
Keywords: Primary health care, health of indigenous peoples, indigenous population (public health), Brazil
RESUMEN
En Brasil, el derecho a la salud reclamado por los pueblos indígenas interactúa con varios marcos regulatorios, incluida la Declaración de Alma-Ata, que propone y destaca la atención primaria de salud (APS) como un medio para aumentar el acceso a la salud y minimizar las desigualdades en materia de salud. Como parte del Sistema Único de Salud de Brasil (SUS), se crearon el subsistema de salud indígena (SASI)y la Política Nacional de Atención de Salud de los Pueblos Indígenas (PNASPI), como estrategias para garantizar el acceso a la atención médica de estas poblaciones. La Política tiene como objetivo brindar atención de salud diferenciada a las poblaciones indígenas, considerando la diversidad sociocultural y las peculiaridades epidemiológicas y logísticas asociadas con la atención de estos pueblos y centrándose en dispensar una atención integral basada en la APS. En este artículo se discute la implementación de la Política, y se destacan los logros y desafíos enfrentados durante este proceso. A pesar de los crecientes recursos financieros disponibles para la implementación del subsistema de salud indígena, las iniciativas desarrolladas hasta ahora han tenido escaso impacto en los indicadores de salud, que reflejan desigualdades históricas en relación con otros segmentos de la población. La participación social aún es débil, y las discusiones en este campo revelan la insatisfacción de los usuarios con el sistema. La falta de continuidad de la atención, sumada a la escasez y alta rotación de los trabajadores de la salud, así como la necesidad de establecer diálogos interculturales que promuevan la articulación con los conocimientos tradicionales, cuestionan la efectividad de la Política. La atención aún se centra en prácticas paliativas y de emergencia, generalmente basadas en la reubicación de los pacientes para tratamiento, lo que se asocia con un alto costo. La superación de estos desafíos depende del fortalecimiento de la APS y de su reconocimiento como marco regulador importante del modelo organizativo de la Política.
Palabras clave: Atención primaria de salud, salud de poblaciones indígenas, población indígena, Brasil
No Brasil, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem mais de 890 mil índios, distribuídos em todos os estados e correspondendo a 0,4% da população brasileira. Esse grupo, distribuído em 505 terras indígenas, ocupa 12,5% do território nacional. Apesar do contingente populacional não tão expressivo em relação ao total da população brasileira, esses povos apresentam imensa sociodiversidade, incluindo 305 grupos étnicos falantes de 274 idiomas. Fundamental para a discussão proposta pelo presente artigo é o quadro epidemiológico, que, guardadas as particularidades de cada povo, em termos gerais é marcado por indicadores de saúde amplamente desfavoráveis frente ao restante da população brasileira (1–3).
Anteriormente à reformulação da Constituição brasileira, em 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado. Privados de direitos, a trajetória esperada era uma progressiva assimilação pelo restante da população brasileira. Essa postura impedia que esses grupos protagonizassem as tomadas de decisão de acordo com suas reais necessidades. Assim, a Constituição de 1988 teve grande impacto sobre a criação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas, considerando a iniciativa de retirar de seu texto a tutela para torná-los cidadãos de fato e de direito. Entre os direitos concedidos está a garantia de atenção diferenciada à saúde (2–4).
A conferência internacional de Alma-Ata, em 1978, foi um marco nas discussões relacionadas ao desenvolvimento da atenção primária à saúde (APS) como base para a efetivação da saúde enquanto direito fundamental e a redução das desigualdades estabelecidas entre povos. Nesse conceito, a APS se dá através de ações que têm foco na articulação entre diferentes setores, considerando um conceito ampliado de saúde (5).
Sendo assim, cabe aos governos, em conjunto com as práticas de participação social, estabelecer normas e políticas que regulem estratégias para reduzir as iniquidades e desigualdades relacionadas à saúde e que se reflitam, de forma direta, no desenvolvimento dos países. Essas iniciativas, com base na situação local, devem promover a integralidade da assistência, compreendendo o acesso aos serviços e aos cuidados de diferentes profissionais, incluindo os “praticantes tradicionais” (5, 6).
Diversos movimentos foram instituídos nos anos 1980 no Brasil em prol de mudanças no sistema de saúde brasileiro, resultando na criação do Sistema Único de Saúde (SUS). Mobilizações nesse sentido também foram realizadas pelo segmento indígena, que não conseguia se ver inserido nas propostas generalistas do SUS e que possuía necessidades específicas (2, 4). A Declaração de Alma-Ata já trazia como objeto de discussão a implementação de ações de APS visando à redução das desigualdades em saúde com foco nas especificidades de cada povo, proposta seguida no processo de construção do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI) a partir das conferências de saúde protagonizadas pelos povos indígenas (5–7).
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é discutir a trajetória de implementação da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) no Brasil, com seus marcos regulatórios, desde sua criação, no ano de 2000. Espera-se assim trazer reflexões acerca dos desafios vivenciados na execução da PNASPI e na redução das desigualdades em saúde, historicamente descritas entre os povos indígenas.
A POLÍTICA NACIONAL DE ATENÇÃO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS
No Brasil, a 1ᵃ Conferência Nacional de Proteção à Saúde Indígena (CNPSI), realizada em 1986, foi um dos primeiros momentos em que o Estado ouviu diferentes lideranças indígenas para discutir propostas relacionadas à formulação de diretrizes voltadas à saúde desses povos, assumindo como legítimas suas necessidades e especificidades e tendo como foco a APS. Até então, a atenção à saúde indígena vinha sendo gerida sucessivamente pelos mais diversos setores e órgãos, com ações desenvolvidas a partir de uma perspectiva paliativa e atividades descontinuadas, com poucos impactos na situação de saúde (3, 4, 7).
A proposta inicial da 1ᵃ CNPSI foi a de que a gerência da atenção à saúde indígena fosse vinculada ao Ministério da Saúde, gestor do SUS no Brasil. Essa discussão se estendeu em uma segunda conferência, que mobilizou ainda mais os indígenas e teve a participação paritária de delegados indígenas e não indígenas. Naquele momento, a proposta estava voltada à mudança no modelo de atenção à saúde desses povos na direção de uma atenção diferenciada, com foco na APS (7).
Em 1999, através da lei 9 836, foi instituído o SASI, passando a gestão da saúde indígena para a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). O SASI tinha como missão instituir, no âmbito territorial indígena, a APS e a continuidade da assistência nos diferentes níveis de atenção, atendendo às especificidades de cada povo (o que incluía desde questões de cunho sociocultural até aspectos logísticos e epidemiológicos), respeitando seus saberes tradicionais e garantindo a participação e o controle social no processo de gestão (3, 4, 8). Também em consonância com as diretrizes de Alma-Ata, as equipes de saúde incorporaram trabalhadores indígenas, que ocuparam as novas funções de agentes indígenas de saúde e agentes indígenas de saneamento (4, 5).
A partir da criação do SASI foi elaborada a PNASPI. Essa política deveria ser implementada de acordo com os princípios do SUS, dando ênfase à descentralização das ações e dos recursos e a universalidade, integralidade, equidade e participação social, com destaque para as questões relacionadas à diversidade cultural, étnica, geográfica, epidemiológica, histórica e política. Como modelo organizacional, foram criados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Ao todo, são 34 no país, havendo, dentro desses, outras instâncias responsáveis pela assistência à saúde em diferentes níveis, como os polos base, as unidades ou postos de saúde e as casas de saúde indígena (8).
A participação social se dá através dos conselhos locais – geralmente situados em uma aldeia ou grupo de aldeias em determinada terra indígena – e distritais de saúde indígena, que apoiam a regulamentação da gestão dos distritos e levam as discussões locais para as conferências distritais. A escolha dos conselheiros é feita pelas comunidades indígenas. A partir daí, as discussões se ampliam nas Conferências Nacionais de Saúde Indígena (8).
CRIAÇÃO DA SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA E SITUAÇÃO ATUAL DA ATENÇÃO À SAÚDE INDÍGENA
Durante a 4° Conferência Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, em 2006, foram reivindicadas melhorias na situação de saúde e questionada a gestão da FUNASA. O órgão vinha sendo alvo de duras críticas, que incluíam sucessivas denúncias de corrupção e desvios de recursos. Em uma discussão sobre o financiamento e a gestão do SASI, Garnelo e Maquiné (9) descrevem uma lista de sites com grande volume de denúncias, incluindo grandes jornais, organizações não governamentais e órgãos estatais de fiscalização e comunicação. Como resultado, formaram-se grupos de trabalho que posteriormente impulsionaram a criação de uma secretaria diretamente ligada ao Ministério da Saúde.
Em 2010, foi aprovada a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) (7, 9). O que sua criação traz de novo é, em última instância, a existência de um órgão responsável unicamente pela saúde indígena, que até então havia sido coordenada por setores dentro de outros órgãos ou instituições que tinham atribuições mais amplas, por vezes sequer limitadas aos povos indígenas. Nesse novo formato, contudo, não estão ausentes os desafios operacionais: Garnelo e Maquiné (9) também apontam que, dentre as secretarias diretamente ligadas ao Ministério da Saúde, a SESAI é a única que contempla simultaneamente responsabilidades tanto pela gestão como pela execução das ações e programas de saúde, o que exige do órgão uma robusta estrutura administrativa.
A 5° Conferência, em 2013, foi a primeira subsequente à criação da SESAI. Entre as principais reinvindicações expressas nessa ocasião estava a garantia da assistência integral, para além da atenção básica. Outra reivindicação era de que a atenção primária fosse fortalecida em associação e respeitando os saberes tradicionais indígenas, o que parecia não se consolidar mesmo após a criação da secretaria. A 5ᵃ Conferência foi objeto de críticas importantes, que indicavam limitações no controle social e na participação dos representantes indígenas e questionavam a aprovação de propostas vistas como contraditórias (3, 4, 10).
UMA AVALIAÇÃO CRÍTICA SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DA PNASPI
Mesmo com a criação e implementação da SESAI, persistem os problemas e desafios enfrentados antes pela FUNASA. Vale assinalar que a disponibilidade de recursos financeiros não se constituiu em empecilho, seja no período de gestão da FUNASA, seja após a criação da SESAI. Na verdade, as análises disponíveis sobre o financiamento do SASI mostram crescimento considerável e praticamente constante dos recursos disponíveis desde os seus primeiros anos de existência, à exceção talvez dos primeiros momentos após a criação da SESAI. Para dar uma ideia da progressão, o orçamento de 2010 foi 3 vezes maior que o de 2002, chegando a R$ 379 000 000,00 (3, 4, 9). Em 2015, alcançou o montante de R$ 1 533 659 105,00 (11).
No entanto, se os dados indicam uma evolução significativa e consistente dos recursos aprovados e executados, não é possível falar em melhora proporcional dos indicadores de saúde (3, 9, 11, 12). A despeito de uma relativa escassez de dados demográficos e epidemiológicos sobre os povos indígenas do país – quando comparados aos dados disponíveis para o restante da população brasileira – é evidente o quadro de marcantes desigualdades que persistem após quase 20 anos de existência do subsistema. Alguns importantes indicadores, como a mortalidade geral, materna, número de internações e óbitos por doenças respiratórias e doenças infecciosas e parasitárias na infância e doenças transmissíveis colocam a saúde indígena em franca desigualdade (13–15). O quadro de precariedade se confirma no Inquérito Nacional de Saúde dos Povos Indígenas, o único inquérito em saúde de abrangência nacional realizado entre esses povos. Esse inquérito registrou elevadas prevalências de anemia (atingindo, além das crianças, as gestantes) e desnutrição, principalmente entre menores de 5 anos, contrastando com a obesidade e o sobrepeso encontrados nas mulheres adultas. O perfil aponta para a importância crescente das doenças crônicas não transmissíveis para os povos indígenas. O inquérito registrou ainda precárias condições sanitárias e taxas elevadas de internação de crianças por diarreia e infecções respiratórias, o que indica a baixa resolutividade das ações na APS (16).
Outra dificuldade relacionada à implementação dessa política se refere ao uso do Sistema de Informações da Atenção à Saúde Indígena (SIASI), restrito aos profissionais e gestores que o utilizam. Além da limitação de acesso às informações, destacam-se os problemas relativos à confiabilidade dos dados (3, 13, 17) e à comunicação com os demais sistemas de informação do SUS. Isso dificulta o planejamento de acordo com as reais necessidades de cada local e um monitoramento que permita avaliar o desenvolvimento de ações, os avanços e limites da PNASPI e, consequentemente, a situação de saúde da população indígena (2, 13, 14).
Alguns autores têm descrito a presença de estruturas de saúde precárias e insumos e equipamentos escassos que, somados à alta rotatividade de profissionais e à complexidade logística encontrada em algumas regiões, têm reflexos negativos na qualidade da prestação de serviços dentro dos territórios indígenas. Cuidados paliativos e atenção emergencial têm sido priorizados, caracterizando o enfraquecimento da APS. Em relação à alta rotatividade dos profissionais, o não estabelecimento de vínculo tende a inviabilizar o reconhecimento das especificidades culturais que permeiam o cuidado em saúde desses povos (3, 4, 18).
A estruturação dos Conselhos de Saúde parece um ganho real dos povos indígenas no que diz respeito às diretrizes da política. A participação social tem como objetivo permitir que os indígenas se insiram nas estratégias de planejamento e avaliação dos serviços prestados a seus povos e consequentemente busquem maior resolutividade para os problemas. Porém, esse controle social enfrenta sérias barreiras para a sua real concretização, a despeito da previsão legal de instâncias de controle social no subsistema. Ainda, durante as conferências, as vozes ativas nem sempre são as dos indígenas (3, 4). Cardoso (4) e Shankland et al. (15) relatam experiências onde os próprios indígenas julgam precária a atuação de alguns conselheiros.
Um grande desafio que persiste é o da realização da diretriz que propõe a articulação entre as chamadas “medicinas tradicionais” e o sistema médico oficial. Análises recentes sugerem que as iniciativas oficiais de incorporação das práticas e saberes nativos resultaram na constituição de dispositivos de controle pelo Estado, com uma perspectiva essencialmente integracionista. Além disso, as propostas oficiais de uma atenção diferenciada parecem ser vistas como problemáticas pelos próprios gestores, e a própria racionalidade biomédica impede a flexibilização das ações em direção ao diálogo intercultural (3, 4, 18–20).
CONCLUSÕES
Embora desejável, um balanço categórico do processo de implementação da PNASPI no Brasil mostra-se pouco produtivo, e talvez nem sequer factível. Houve, por certo, avanços importantes, com ganhos reais no cenário da saúde indígena no país. No entanto, em termos gerais, os dados disponíveis seguem apontando para enormes distâncias entre o que a PNASPI prevê e a precariedade com que a mesma se concretiza no cotidiano vivido pelos povos indígenas. Se por um lado é possível afirmar que, a despeito de todas as dificuldades enfrentadas a partir da criação do subsistema de saúde indígena, a Política teve impactos positivos no cenário da saúde indígena no país, é também verdadeiro que os impactos foram limitados.
Parece mais sensato, talvez, pensar em ganhos ainda parciais, em muitos aspectos positivos, mas distantes dos objetivos propostos pela PNASPI. São inegáveis progressos, como o aumento do acesso desses povos aos serviços de saúde, inclusive nas regiões mais remotas do país. O foco na APS, como propõe Alma-Ata, mesmo que frágil em sua efetivação no panorama indígena, trouxe uma importante mudança de perspectiva em relação às práticas vigentes anteriormente à incorporação da saúde indígena pelo Ministério da Saúde. A participação e o controle social avançaram significativamente, mas encontram ainda sérias barreiras à sua efetivação. A gestão da SESAI ainda se mostra centralizada e limitada pelo modo como seu quadro de pessoal é composto; os problemas com a formação de profissionais para a atuação em ambientes interétnicos e a elevada rotatividade parecem muito distantes de serem solucionados.
Ao mesmo tempo, há que se mencionar a persistência de uma distância inaceitável entre diversos indicadores de saúde registrados entre povos indígenas e o restante da população brasileira, sendo o segmento indígena sistematicamente desfavorecido. Reflexos da manutenção dessas iniquidades em saúde estão em pauta nas discussões das conferências nacionais de saúde indígena e nos recorrentes discursos de insatisfação dos usuários com a atenção à saúde de seus povos. Apesar de a estruturação e construção da PNASPI corroborarem as propostas descritas na Declaração de Alma-Ata, pensando a APS como estratégia para viabilizar o direito à saúde através do acesso, com vistas a reduzir as desigualdades, estimulando a participação social e a formação dos profissionais, assim como a manutenção do vínculo entre esses profissionais e sua população adstrita, podemos analisar que, de maneira integral, essa APS não se efetiva.
Agradecimentos
O desenvolvimento do projeto está vinculado à Bolsa Fundação CAPES/PDSE Edital 47/2017 (processo n° 88881.190163/2018–01).
Footnotes
Como citar Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2018;42:e184. https://doi.org/10.26633/RPSP.2018.184
Declaração. As opiniões expressas no manuscrito são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem necessariamente a opinião ou política da RPSP/PAJPH ou da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
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