Inicialmente descrito há mais de 40 anos por Tambe et al.,1o fenômeno de fluxo lento coronariano (FLC) é caracterizado por retardo da progressão do meio de contraste na ausência de doença epicárdica coronariana obstrutiva durante angiografia coronária invasiva (ACI).2 O FLC afeta tipicamente jovens fumantes do sexo masculino, que frequentemente apresentam síndrome coronariana aguda (SCA) ou angina de repouso refratária recorrente que requer internação.2-4 Além disso, arritmias potencialmente fatais e morte súbita cardíaca também foram associadas ao FLC.5
Apesar do aumento da conscientização e da pesquisa, o FLC permanece uma condição difícil de descrever e pouco compreendida, com muitos mecanismos patogênicos propostos, incluindo disfunção endotelial, vasomotora e microvascular.2,6 De fato, uma regulação anormal do tônus microvascular que ocorre apenas durante condições de repouso, enquanto a reserva de fluxo coronariano está dentro da faixa normal, foi descrita no FLC.7
Nessa edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Candemir et al.,8 dão uma contribuição importante a esse campo do conhecimento. Os autores estudaram 35 pacientes com dor torácica encaminhados para uma angiografia coronária invasiva (ACI) diagnóstica. Todos tinham níveis negativos de troponina e nenhuma evidência de isquemia no teste ergométrico. Foi feita uma comparação entre os pacientes que apresentaram FLC na artéria descendente anterior esquerda (n = 19) e os controles pareados com artérias coronárias normais e sem anormalidades do fluxo coronariano (n = 16). Eles procuraram investigar se as cicatrizes no miocárdio identificadas por ressonância magnética cardíaca (RMC) e / ou se os níveis do fragmento N-terminal do peptídeo natriurético tipo B (NT-ProBNP) eram mais frequentes no grupo com FLC. É importante ressaltar que, pelo que sabemos, este foi o primeiro estudo a utilizar a RMC para avaliar a presença de fibrose miocárdica na população com FLC.
Vale ressaltar que a RMC utilizando a técnica de realce tardio é agora uma ferramenta amplamente disponível e poderosa que permite a identificação e quantificação precisa da fibrose miocárdica, com vários estudos demonstrando sua utilidade no diagnóstico e prognóstico de cardiomiopatias tanto isquêmicas quanto não isquêmicas.9-15 Curiosamente, os autores demonstram que o realce tardio estava presente em até 52,5% (n = 10) dos pacientes com FLC, em oposição a nenhum no grupo controle. Os autores concluíram que o FLC pode resultar em alterações irreversíveis no tecido miocárdico.
Entretanto, não acreditamos que os dados apresentados possam ser utilizados para estabelecer causalidade entre FLC e fibrose miocárdica. Por exemplo, em um subgrupo de pacientes (n = 3), a lesão miocárdica foi observada nas paredes inferior e ínfero-lateral, e não no território típico da artéria coronária descendente anterior esquerda, onde estava presente o FLC. Além disso, os autores não descrevem se o padrão de realce tardio observado em seu estudo era predominantemente isquêmico (por exemplo, subendocárdico ou transmural) ou não-isquêmico (mesocárdico ou epicárdico). Mais importante ainda, como os autores apontam durante a discussão, eles realizaram um estudo transversal e, portanto, nenhuma relação temporal pode ser estabelecida entre o FLC e a fibrose miocárdica. Uma das muitas explicações possíveis é que esses pacientes com fibrose miocárdica na RMC podem ter apresentado anteriormente um infarto do miocárdio com artérias coronárias normais (MINOCA, do inglês myocardial infarction with normal coronary arteries) e o FLC é apenas uma consequência desse evento anterior. Embora os autores tenham encontrado uma associação entre o FLC e a fibrose miocárdica, acreditamos que são necessários mais estudos para determinar se existe uma relação causal entre eles.
Curiosamente, níveis mais altos de NT-pro-BNP, um conhecido marcador prognóstico na SCA,16 também foram observados em pacientes com FLC quando as cicatrizes miocárdicas foram detectadas por RMC, em comparação com o FLC sem evidência de fibrose na RMC (NT-pro- BNP = 147,10 pg / mL vs. 28,0 pg / mL, p = 0,03).
É importante ressaltar que, em um estudo publicado anteriormente por Yurtdaş et al.,6 demonstrou-se que níveis elevados de NT-pro-BNP se correlacionaram com angina e infradesnivelamento do segmento ST em pacientes com FLC durante testes em esteira. No entanto, nenhuma anormalidade foi observada durante o teste ergométrico em nenhum paciente deste estudo. Novamente, embora os autores demonstrem uma associação de NT-pro-BNP com FLC e fibrose miocárdica, acreditamos que nenhuma relação causal definitiva possa ser estabelecida com base nos dados apresentados.
Em geral, este é um trabalho interessante de Candemir et al.,8 utilizando a RMC para estudar uma condição ainda obscura. Achamos muito interessante que a RMC tenha permitido a detecção de fibrose miocárdica em um subgrupo de pacientes com FLC sem história prévia de infarto do miocárdio. A identificação de cicatrizes miocárdicas utilizando imagens de realce tardio é uma poderosa ferramenta prognóstica em múltiplas cardiomiopatias, isquêmicas e não isquêmicas. Embora pequeno em tamanho, este estudo de Candemir et al.,8 abre novas possibilidades de pesquisa para responder se há causalidade na associação entre FLC e fibrose miocárdica e se a presença de fibrose miocárdica nesses pacientes tem alguma implicação prognóstica ou se, por exemplo, está associada a uma maior probabilidade de arritmias malignas. Por outro lado, pesquisas futuras utilizando novas técnicas de RMC para caracterização de tecidos, incluindo o mapeamento de T1 e T2, também podem ajudar a esclarecer essa condição ainda pouco compreendida.
Footnotes
Minieditorial referente ao artigo: Determinação do Tecido Cicatricial do Miocárdio no Fenômeno de Fluxo Coronário Lento e a Relação entre a Quantidade de Tecido Cicatricial e o Nt-ProBNP
Referências
- 1. Tambe AA, Demany MA, Zimmerman HA, Mascarenhas E. Angina pectoris and slow flow velocity of dye in coronary arteries—A new angiographic finding. Am Heart J. 1972;84(1):66-71. [DOI] [PubMed]; Tambe AA, Demany MA, Zimmerman HA, Mascarenhas E. Angina pectoris and slow flow velocity of dye in coronary arteries—A new angiographic finding. Am Heart J. 1972;84(1):66–71. doi: 10.1016/0002-8703(72)90307-9. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 2. Wang X, Nie S-P. The coronary slow flow phenomenon: characteristics, mechanisms and implications. Cardiovasc Diagn Ther. 2011;1(1):37-43. [DOI] [PMC free article] [PubMed]; Wang X, Nie S-P. The coronary slow flow phenomenon: characteristics, mechanisms and implications. Cardiovasc Diagn Ther. 2011;1(1):37–43. doi: 10.3978/j.issn.2223-3652.2011.10.01. [DOI] [PMC free article] [PubMed] [Google Scholar]
- 3. Fineschi M, Gori T. Coronary Slow-Flow Phenomenon or Syndrome Y. J Am Coll Cardiol. 2010;56(3):239-40. [DOI] [PubMed]; Fineschi M, Gori T. Coronary Slow-Flow Phenomenon or Syndrome Y. J Am Coll Cardiol. 2010;56(3):239–240. doi: 10.1016/j.jacc.2009.09.082. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 4. Beltrame JF, Limaye SB, Horowitz JD. The Coronary Slow Flow Phenomenon – A New Coronary Microvascular Disorder. Cardiology. 2002;97(4):197-202. [DOI] [PubMed]; Beltrame JF, Limaye SB, Horowitz JD. The Coronary Slow Flow Phenomenon – A New Coronary Microvascular Disorder. Cardiology. 2002;97(4):197–202. doi: 10.1159/000063121. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 5. Saya S, Hennebry TA, Lozano P, Lazzara R, Schechter E. Coronary Slow Flow Phenomenon and Risk for Sudden Cardiac Death Due to Ventricular Arrhythmias: A Case Report and Review of Literature. Clin Cardiol. 2008;31(8):352-5. [DOI] [PMC free article] [PubMed]; Saya S, Hennebry TA, Lozano P, Lazzara R, Schechter E. Coronary Slow Flow Phenomenon and Risk for Sudden Cardiac Death Due to Ventricular Arrhythmias: A Case Report and Review of Literature. Clin Cardiol. 2008;31(8):352–355. doi: 10.1002/clc.20266. [DOI] [PMC free article] [PubMed] [Google Scholar]
- 6. Yurtdaş M, Özcan IT, Çamsari A, Cice KD, Tamer L, Cin VC. NT-pro-BNP levels and their response to exercise in patients with slow coronary flow. Arq Bras Cardiol. 2012;99(6):1115-22. [PubMed]; Yurtdaş M, Özcan IT, Çamsari A, Cice KD, Tamer L, Cin VC. NT-pro-BNP levels and their response to exercise in patients with slow coronary flow. Arq Bras Cardiol. 2012;99(6):1115–1122. [PubMed] [Google Scholar]
- 7. Fineschi M, Bravi A, Gori T. The “slow coronary flow” phenomenon: Evidence of preserved coronary flow reserve despite increased resting microvascular resistances. Int J Cardiol. 2008;127(3):358-61. [DOI] [PubMed]; Fineschi M, Bravi A, Gori T. The “slow coronary flow” phenomenon: Evidence of preserved coronary flow reserve despite increased resting microvascular resistances. Int J Cardiol. 2008;127(3):358–361. doi: 10.1016/j.ijcard.2007.06.010. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 8.. Candemir M, Sahinarslan A, Yazol M, Oner YA, Boyaci B. Determinação do tecido cicatricial do miocádio no fenômeno de fluxo coronário lento e a relação entre quantidade de tecido cicatricial e o Nt-Pro Bnp. Arq Bras Cardiol. 2020; 114(3):540-551 [DOI] [PMC free article] [PubMed]; Candemir M, Sahinarslan A, Yazol M, Oner YA, Boyaci B. Determinação do tecido cicatricial do miocádio no fenômeno de fluxo coronário lento e a relação entre quantidade de tecido cicatricial e o Nt-Pro Bnp. Arq Bras Cardiol. 2020;114(3):540–551. doi: 10.36660/abc.2018149. [DOI] [PMC free article] [PubMed] [Google Scholar]
- 9. Sara L, Szarf G, Tachibana A, Shiozaki AA, Villa AV, Oliveira AC, et al. II Diretriz de Ressonância Magnética e Tomografia computadorizada Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia e do Colégio Brasileiro de Radiologia. Arq Bras Cardiol. 2014;103(6):1-86. [DOI] [PubMed]; Sara L, Szarf G, Tachibana A, Shiozaki AA, Villa AV, Oliveira AC, et al. II Diretriz de Ressonância Magnética e Tomografia computadorizada Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia e do Colégio Brasileiro de Radiologia. Arq Bras Cardiol. 2014;103(6):1–86. doi: 10.5935/abc.2014S006. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 10. Wu KC, Kim RJ, Bluemke D, Rochitte CE, Zerhouni EA, Becker LC, et al. Quantification and time course of microvascular obstruction by contrast-enhanced echocardiography and magnetic resonance imaging following acute myocardial infarction and reperfusion. J Am Coll Cardiol. 1998;32(6):1756-64. [DOI] [PubMed]; Wu KC, Kim RJ, Bluemke D, Rochitte CE, Zerhouni EA, Becker LC, et al. Quantification and time course of microvascular obstruction by contrast-enhanced echocardiography and magnetic resonance imaging following acute myocardial infarction and reperfusion. J Am Coll Cardiol. 1998;32(6):1756–1764. doi: 10.1016/s0735-1097(98)00429-x. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 11. Kim HW, Farzaneh-Far A, Kim RJ. Cardiovascular Magnetic Resonance in Patients With Myocardial Infarction. Current and Emerging Applications. J Am Coll Cardiol. 2009;55(1):1-16. [DOI] [PubMed]; Kim HW, Farzaneh-Far A, Kim RJ. Cardiovascular Magnetic Resonance in Patients With Myocardial Infarction. Current and Emerging Applications. J Am Coll Cardiol. 2009;55(1):1–16. doi: 10.1016/j.jacc.2009.06.059. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 12. Azevedo CF, Nigri M, Higuchi ML, Pomerantzeff PMA, Spina G, Sampaio R, et al. Prognostic significance of myocardial fibrosis quantification by histopathology and magnetic resonance imaging in patients with severe aortic valve disease. J Am Coll Cardiol. 2010;56(4):278-87. [DOI] [PubMed]; Azevedo CF, Nigri M, Higuchi ML, Pomerantzeff PMA, Spina G, Sampaio R, et al. Prognostic significance of myocardial fibrosis quantification by histopathology and magnetic resonance imaging in patients with severe aortic valve disease. J Am Coll Cardiol. 2010;56(4):278–287. doi: 10.1016/j.jacc.2009.12.074. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 13. Azevedo Filho CF de, Hadlich M, Petriz JLF, Mendonça LA, Moll Filho JN, Rochitte CE. Quantificação da massa infartada do ventrículo esquerdo pela ressonância magnética cardíaca: comparação entre a planimetria e o método de escore visual semi-quantitativo. Arq Bras Cardiol. 2004;83(2):111-7. [DOI] [PubMed]; Azevedo CF de, Filho, Hadlich M, Petriz JLF, Mendonça LA, Moll JN, Filho, Rochitte CE. Quantificação da massa infartada do ventrículo esquerdo pela ressonância magnética cardíaca: comparação entre a planimetria e o método de escore visual semi-quantitativo. Arq Bras Cardiol. 2004;83(2):111–117. [Google Scholar]
- 14.Carvalho FP de, Erthal F, Azevedo CF. The Role of Cardiac MR Imaging in the Assessment of Patients with Cardiac Amyloidosis. Magn Reson Imaging Clin N Am. 2019;27(3):453-63. [DOI] [PubMed]; Carvalho FP de, Erthal F, Azevedo CF. The Role of Cardiac MR Imaging in the Assessment of Patients with Cardiac Amyloidosis. Magn Reson Imaging Clin N Am. 2019;27(3):453–463. doi: 10.1016/j.mric.2019.04.005. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 15. de Carvalho FP, Azevedo CF. Comprehensive Assessment of Endomyocardial Fibrosis with Cardiac MRI: Morphology, Function, and Tissue Characterization. RadioGraphics. Jan. 2020:190148. [DOI] [PubMed]; de Carvalho FP, Azevedo CF. Comprehensive Assessment of Endomyocardial Fibrosis with Cardiac MRI: Morphology, Function, and Tissue Characterization. RadioGraphics. 2020 Jan;:190148. doi: 10.1148/rg.2020190148. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]
- 16. Haaf P, Balmelli C, Reichlin T, Twerenbold R, Reiter M, Meissner J, et al. N-terminal Pro B-type Natriuretic Peptide in the Early Evaluation of Suspected Acute Myocardial Infarction. Am J Med. 2011;124(8):731-9. [DOI] [PubMed]; Haaf P, Balmelli C, Reichlin T, Twerenbold R, Reiter M, Meissner J, et al. N-terminal Pro B-type Natriuretic Peptide in the Early Evaluation of Suspected Acute Myocardial Infarction. Am J Med. 2011;124(8):731–739. doi: 10.1016/j.amjmed.2011.02.035. [DOI] [PubMed] [Google Scholar]