Caro Editor,
Em dezembro de 2019, a China reportou à Organização Mundial da Saúde (OMS) um surto de pneumonia na cidade de Wuhan, capital da província de Hubei. Poucos dias depois, o agente causador foi identificado, o severe acute respiratory syndrome coronavirus 2 (SARS-CoV-2).1
A doença, batizada de coronavirus disease 2019 (COVID-19), rapidamente se espalhou pelos países e, em 11 de março de 2020, a OMS declarou pandemia global.1 No Brasil, o primeiro caso foi confirmado em 26 de fevereiro e a primeira morte em 17 de março, em São Paulo. Em 09 de abril, o Brasil somava 155.000 casos confirmados e 10.000 mortes pela doença.2
Os recentes estudos já apontam a dupla relação entre o aparelho circulatório e a COVID-19:3 - 5 i. o vírus pode causar alterações cardiovasculares, como arritmias, lesão cardíaca aguda, miocardite, dentre outras; ii. a presença de doenças do aparelho circulatório eleva o risco de agravamento e mortalidade pela COVID-19. Essa relação tem sido motivo de preocupação por parte de clínicos e cientistas. Partindo deste pressuposto, este estudo objetivou descrever o perfil clínico e epidemiológico de óbitos por COVID-19 que tinham doenças do aparelho circulatório previamente.
Trata-se de um estudo observacional transversal envolvendo 197 óbitos por COVID-19 ocorridos em Pernambuco que tinham pelo menos uma doença do aparelho circulatório previamente. Foram analisadas as seguintes variáveis: sexo, faixa etária, sinais/sintomas, comorbidades e fatores risco e tempo entre os primeiros sintomas e o óbito. Os dados foram obtidos da página eletrônica de monitoramento da COVID-19 do estado (https://dados.seplag.pe.gov.br/apps/corona.html) em 07 de maio de 2020. Após a coleta, o banco de dados passou por ajustes das variáveis para a subsequente análise. Neste estudo, foi utilizada apenas a estatística descritiva (frequência absoluta, frequência relativa, média e desvio padrão) com o auxílio do software SPSS versão 24.0 (IBM Corporation). Por utilizar dados de domínio público, este estudo dispensou a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa.
Em 07 de maio de 2020, o estado de Pernambuco já havia registrado 9.325 casos e 749 óbitos em decorrência da COVID-19. Desses óbitos, 293 (39,11%) possuíam o campo “ comorbidades ” preenchido (12 informavam que os pacientes não possuíam comorbidades e 281 citando as comorbidades). Dos 281 com comorbidades relatadas, 197 apresentavam pelo menos uma doença do aparelho circulatório, o que correspondeu a 70,10% dos indivíduos com comorbidades relatadas e a 26,30% de todos os óbitos.
Observou-se predomínio do sexo feminino (53,3%; n = 105) e de indivíduos com 50 anos ou mais (92,3%; n = 182). Os seguintes quatro sinais/sintomas apresentaram frequência superior a 50%: dispneia (80,7%; n = 159), tosse (72,1%; n = 142), febre (67,0%; n = 132) e saturação de oxigênio < 95% (58,9%; n = 116) ( Tabela 1 ).
Tabela 1. Caracterização clínica e epidemiológica dos óbitos por COVID-19 em Pernambuco com doenças do aparelho circulatório. Pernambuco, Brasil, 2020 (n=197).
Variável | n | % |
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Sexo | ||
| ||
Feminino | 105 | 53,3 |
Masculino | 92 | 46,7 |
| ||
Idade (anos) | ||
| ||
20-29 | 2 | 1,0 |
30-39 | 3 | 1,5 |
40-49 | 10 | 5,2 |
50-59 | 26 | 13,2 |
60-69 | 53 | 26,9 |
70-79 | 58 | 29,4 |
80+ | 45 | 22,8 |
| ||
Sinais/sintomas | ||
| ||
Febre | 132 | 67,0 |
Dispneia | 159 | 80,7 |
Tosse | 142 | 72,1 |
Saturação de oxigênio < 95% | 116 | 58,9 |
Dor de garganta | 12 | 6,1 |
Astenia | 9 | 4,6 |
Diarreia | 9 | 4,6 |
Náuseas/vômito | 7 | 3,6 |
Cefaleia | 3 | 1,5 |
Mialgia | 3 | 1,5 |
Perda de Peso | 2 | 1,0 |
Dor abdominal | 1 | 0,5 |
Coriza | 1 | 0,5 |
Prisão de ventre | 1 | 0,5 |
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Nº comorbidades | ||
| ||
Somente uma | 42 | 21,3 |
Duas | 81 | 41,1 |
Três ou mais | 74 | 37,6 |
| ||
Sistema cardiovascular e hematológico | ||
| ||
Hipertensão arterial sistêmica | 163 | 82,7 |
Cardiopatia não especificada | 51 | 25,9 |
Insuficiência venosa crônica | 5 | 2,5 |
Doença arterial coronariana | 4 | 2,0 |
Trombose | 3 | 1,5 |
Arritmia | 2 | 1,0 |
Doença de Chagas | 1 | 0,5 |
Anemia | 1 | 0,5 |
| ||
Sistema endócrino/metabólico | ||
| ||
Diabetes mellitus | 106 | 53,8 |
Obesidade | 22 | 11,2 |
Dislipidemia | 2 | 1,0 |
Hipotireoidismo | 1 | 0,5 |
| ||
Sistema respiratório | ||
| ||
Tabagismo | 15 | 7,6 |
Doença pulmonar obstrutiva crônica | 9 | 4,6 |
Pneumonia | 2 | 1,0 |
Tuberculose | 1 | 0,5 |
Asma | 1 | 0,5 |
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Sistema neurológico | ||
| ||
Acidente vascular cerebral (evento prévio) | 16 | 8,1 |
Doença mental não especificada | 5 | 2,5 |
Doença neurológica não especificada | 4 | 2,0 |
Alzheimer | 4 | 2,0 |
Miastenia | 1 | 0,5 |
| ||
Outras condições/fatores de risco | ||
| ||
Doença renal crônica | 21 | 10,7 |
Câncer | 8 | 4,1 |
Etilismo | 5 | 2,5 |
Doença dermatológica não especificada | 3 | 1,5 |
Doença hepática | 2 | 1,0 |
Amputação de membro | 3 | 1,5 |
Outras condições com apenas um registro (HIV, pancreatite, transplante prévio, osteoporose, restrito ao leito). | 1 | 0,5 |
| ||
Tempo entre início dos sintomas e o óbito (média e desvio padrão, em dias) | 9,7±7,8 |
Quanto à presença de comorbidades, 78,7% (n = 155) apresentavam duas ou mais comorbidades, sendo pelo menos uma relacionada ao aparelho circulatório. Dentre elas, a hipertensão arterial sistêmica foi observada em 82,7% (n = 163) dos indivíduos e a cardiopatia não especificada em 25,9% (n = 51) dos indivíduos ( Tabela 1 ).
Além do comprometimento do aparelho circulatório, as doenças e fatores de risco mais comuns na população estudada foram diabetes mellitus (53,8%; n = 106), obesidade (11,2%; n = 22), doença renal crônica (10,7%; n = 21), acidente vascular cerebral prévio (8,1%; n = 16), tabagismo (7,6%; n = 15), doença pulmonar obstrutiva crônica (4,6%; n = 9) e câncer (4,1%; n = 8). O tempo médio (em dias) entre o início dos sintomas e o óbito foi de 9,7 ± 7,8. Salienta-se que dos 197 pacientes incluídos neste estudo, em 10 deles não foi possível calcular o tempo entre o início dos primeiros sintomas e o óbito ( Tabela 1 ).
O perfil evidenciado neste estudo está em consonância com o observado em outras partes do mundo.3 - 5 No entanto, três aspectos chamam a atenção: i. a elevada proporção de indivíduos com múltiplas comorbidades (78,7% dos pacientes possuíam duas ou mais doenças/fatores de risco de base), ii. a ampla variedade de doenças/fatores de risco observado e iii. o estado clínico em que indivíduos chegaram ao atendimento hospitalar (função respiratória comprometida).
O somatório de comorbidades/fatores de risco em uma única pessoa pode elevar o risco de mortalidade pela COVID-19, embora ainda não existam estimativas precisas destes riscos. Em estudo conduzido em um hospital na cidade de Wuhan, China, envolvendo 416 pacientes internados com COVID-19, 44 (10,6%) e 22 (5,3%) tinham doença cardíaca coronariana e doença cerebrovascular, respectivamente. Outras comorbidades também foram observadas, como insuficiência cardíaca crônica (4,1%; n = 17), insuficiência renal crônica (3,4%; n = 14), doença pulmonar obstrutiva crônica (2,9%; n = 12) e câncer (2,2%; n = 9), assim como foi observado em nossa investigação. A mortalidade foi maior nos indivíduos com injúria cardíaca (51,2% no grupo com injúria vs. 4,5% no grupo sem injúria) e doenças preexistentes foram fatores associados à maior mortalidade.4
A associação entre várias comorbidade/fatores de risco pode explicar o quadro de comprometimento respiratório no momento da admissão, com dispneia e saturação de oxigênio < 95%, o que indica grave comprometimento pulmonar desses pacientes. A íntima relação funcional entre os sistemas cardiovascular (duplamente comprometido pela doença de base e pela infecção por SARS-CoV-2) e pulmonar (injúria pulmonar acentuada) deve ser valorizada no processo de cuidado dos pacientes com COVID-19 que apresentam doenças do aparelho circulatório.3 - 5
Por fim, destacamos a necessidade de adotar e/ou fortalecer mecanismos que reduzam a contaminação de indivíduos com doenças do aparelho circulatório pela COVID-19. Para aqueles já contaminados, o diagnóstico precoce e o monitoramento do quadro clínico devem ser rigorosamente observados, de modo a evitar o agravamento e a morte desses indivíduos.
Referências
- 1.1. World Health Organization. (WHO) Novel Coronavirus (2019-nCoV) Situation Report – 51. [internet [Cited in 2020 May 10]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200311-sitrep-51-covid-19.pdf?sfvrsn=1ba62e57_10
- 2.2. Brasil. Ministério da Saúde. Coronavírus Brasil: painel de casos de doenças pelo coronavírus 2019 (COVI-19) [internet]. [Cited in 2020 May 10]. Avaliable from: https://covid.saude.gov.br/
- 3.3. Strabelli TMV, Uip DE. COVID-19 e o coração. Arq Bras Cardiol. 2020;144(4):598-600. [DOI] [PubMed]
- 4.4. Shi S, Qin M, Shen B, Cai Y, Liu T, Yang F, et al. Association of Cardiac Injury With Mortality in Hospitalized Patients With COVID-19 in Wuhan, China [published online ahead of print, 2020 Mar 25]. JAMA Cardiol. 2020;e200950. [DOI] [PMC free article] [PubMed]
- 5.5. Ruan Q, Yang K, Wang W, Jiang L, Song J. Clinical predictors of mortality due to COVID-19 based on an analysis of data of 150 patients from Wuhan, China. Intensive Care Med. 2020;46(5):846-8. [DOI] [PMC free article] [PubMed]