A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a COVID-19, infecção causada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2),1 como uma pandemia em 11 de março de 2020. Até o início do mês de junho, foram contabilizados 7 milhões de casos positivos e cerca de 400 mil mortes pela doença no mundo.2 No Brasil, nesse mesmo período, foram aproximadamente 700 mil casos e cerca de 40 mil óbitos.3
Embora o vírus possa infectar indivíduos de qualquer idade, até o momento, a maioria dos casos graves foi descrita naqueles com mais de 55 anos, com comorbidades associadas, muitas delas cardiovasculares.4,5 Portanto, justifica-se a grande preocupação da comunidade médica em saber como atuar frente à COVID-19, em especial nessa população de maior risco e com muitas comorbidades cardiovasculares, com o objetivo de reduzir as taxas de morbimortalidade.4,5
O SARS-CoV-2 usa como receptor de entrada na célula a enzima conversora de angiotensina tipo 2 (ECA-2),6 uma molécula expressa em abundância na superfície das células do endotélio, dos rins, dos pulmões e de outros órgãos. Ela é um componente do sistema renina-angiotensina (SRA), cuja sequência genômica foi descoberta em 2000.6 A partir de então, foi possível reconhecer um eixo compensatório das ações clássicas do SRA (eixo “protetor”) para contrapor o eixo deletério causado pela produção da angiotensina 2. Do ponto de vista estrutural, a ECA-2 é semelhante à clássica; porém, do ponto de vista funcional, elas se contrapõem.7 Isso porque a ECA converte a angiotensina 1 em angiotensina 2 e provoca efeitos deletérios decorrentes da estimulação dos receptores AT1, como aumento da atividade simpática, reabsorção de sal e água, vasoconstrição, inflamação, liberação de aldosterona e vasopressina, contribuindo para fibrose tecidual, disfunção do endotélio e hipertensão arterial. A ECA-2 decompõe a angiotensina 2 em seus metabólitos, incluindo angiotensina (1 a 9) e angiotensina (1 a 7), e ativa receptores mas, que são potentes vasodilatadores e, portanto, podem ser um regulador negativo do SRA.7 A ECA-2 é expressa em uma variedade de tecidos diferentes, incluindo as vias respiratórias superiores e inferiores, o miocárdio e a mucosa gastrointestinal.8 Embora sua função na saúde e na doença humana não tenha sido totalmente elucidado, ela parece ter um importante papel regulador na pressão sanguínea e na função cardíaca. O papel fisiológico da ECA-2 nas vias respiratórias é ainda desconhecido; no entanto, em camundongos, foi demonstrado que ela protege de lesões pulmonares graves relacionadas a aspiração e sepse.9
As questões envolvendo a relação entre maior disponibilidade de receptores de ECA-2 e, possivelmente, maior susceptibilidade para a infecção pelo SARS-Cov-22 são amplamente debatidas na cardiologia, visto que o uso de medicamentos como inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) e bloqueadores do receptor de angiotensina 2 (BRA) aumenta a expressão dos receptores da ECA-2 em diferentes tecidos, incluindo o pulmão,10 embora seja fundamental para o tratamento da hipertensão arterial e insuficiência cardíaca.11,12 Houve discussões a respeito da substituição desses fármacos na vigência da pandemia; porém, devido à relevância no quesito eficácia e segurança no tratamento das doenças cardiovasculares e, até o momento, à ausência de evidências da relação entre o uso deles e o aumento da mortalidade pela COVID-19, há um consenso13 quanto à manutenção dos mesmos até haver evidências robustas que possam indicar o contrário. Na verdade, a boa notícia é que os estudos sugerem até mesmo um efeito protetor dos IECA na redução de mortalidade durante infecção pelo SARS-CoV-2, e nenhuma comprovação de aumento de risco em usuários de BRA.14
É interessante observar que outro aspecto muito relevante e polêmico também envolve a expressão da ECA-2 e se relaciona ao tabagismo. Alguns autores15,16 levantaram a hipótese de que a observação da baixa prevalência de fumantes internados com COVID-19 na China e na França, em comparação com a prevalência mais elevada do tabagismo na população geral, possa ter relação com a menor expressão de ECA-2, provocada pela nicotina.17 Oakes et al.17 fazendo uma revisão sobre efeitos da nicotina e SRA, demostrou que a nicotina inalada altera a homeostase do SRA pulmonar, por estimular seu eixo clássico (aumento de expressão e concentração de ECA-ANG 2) em detrimento do eixo protetor (redução de expressão e concentração de ECA-2 e angiotensina 1-7), determinando, assim, menor expressão de ECA-2. Desse modo, os defensores da hipótese16 do efeito “protetivo” da nicotina especulam que isso dificultaria a adesão do SARS-Cov-2 no epitélio respiratório. Cabe ressaltar que a média de idade dos pacientes internados com COVID-19 é mais elevada,4 e a prevalência do tabagismo cai significativamente com o envelhecimento, tanto porque fumantes morrem precocemente18 quanto porque deixam de fumar quando adoecem.18 Novamente, esse é um paradoxo envolvendo a expressão dos receptores de ECA-2 e o SRA.
Nesse contexto, algumas perguntas devem ser respondidas: existem dados epidemiológicos que indiquem esse efeito “protetor”? Qual é a ação da nicotina sobre o SRA no epitélio brônquico? A relação entre expressão de ECA-2 no epitélio pulmonar é semelhante entre fumantes e não fumantes? Quais as consequências da interrupção na homeostase do SRA no pulmão causada pela nicotina?
Os dados de mortalidade mostram maior risco de morte por COVID-19 em fumantes com ou sem doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC),19-21 e o risco de intubação é dobrado19 comparando-se fumantes com não fumantes. Esses dados corroboram o que ocorre em outras infecções virais, cujo curso é pior em fumantes.22,23 Considerando-se a complexidade do SRA, a nicotina pode afetar outros elementos além dos discutidos, provocando efeitos ainda não elucidados.
Estudos recentes demonstraram aumento da expressão da ECA-2 no epitélio de pequenas vias respiratórias de tabagistas e portadores de DPOC com COVID-19. Brake et al.,24 por meio da imuno-histoquímica, identificaram pela primeira vez uma expressão aumentada de ECA-2 no tecido pulmonar de pacientes com COVID-19. Porém ela foi maior nos pacientes com DPOC, fumantes ou não, e em menor proporção em fumantes sem DPOC. Não se encontrou aumento da expressão de ECA-2 em indivíduos não fumantes. Leung et al.25 também observaram maior expressão da ECA-2 no epitélio das pequenas vias respiratórias de pacientes com DPOC e fumantes com COVID-19, analisando material de lavado brônquico e correlacionando isso à gravidade da doença. Russo et al.26 investigaram in vitro o mecanismo pelo qual a nicotina poderia levar ao aumento da ECA-2 nessa população. Diferentes células das vias respiratórias, como epiteliais brônquicas, epiteliais alveolares tipo 2 e fibroblastos intersticiais, expressam receptores nicotínicos de acetilcolina (nAChR), especificamente o subtipo α7-nAChR, e também os componentes do SRA. Quantificando-se a expressão de ECA-2 em células epiteliais brônquicas em cultura, foi possível demonstrar que a nicotina promove regulação positiva (aumento da expressão de ECA-2) mediada especificamente pela sua ligação com os receptores α7-nAChR. Assim, o tabagismo poderia provocar um aumento no mecanismo de captação celular para o SARS-Cov-2 por meio da sinalização da via α7-nAChR.
Com esses dados, o raciocínio seria de que os pacientes tabagistas e com DPOC teriam, na verdade, mais susceptibilidade à infecção pelo SARS-Cov-2. Esse mecanismo, inclusive, foi formulado e representado em modelo esquemático (Figura 1) por Olds e Kabbani27 e explica como a exposição à nicotina aumenta o risco de entrada do vírus nas células pulmonares e, consequentemente, como o ato de fumar pode ter impacto negativo na fisiopatologia da COVID-19.
Figura 1. Modelo esquemático de como a exposição à nicotina aumenta o risco de entrada do SARS-CoV-2 no pulmão do hospedeiro humano. A. Respostas pulmonares e imunes à infecção pelo vírus em células epiteliais de fumantes (à direita) e não fumantes (à esquerda). B. Mecanismos celulares desencadeados pela atividade de receptores nicotínicos promovem a entrada e proliferação do SARS-CoV-2 nas células epiteliais por meio da coexpressão da ECA-2. A ativação de receptores nicotínicos pela nicotina pode causar maior ativação de proteases, morte celular (apoptose) e sinalização inflamatória por meio de mecanismos que convergem nas vias de regulação e sinalização da ECA-2.

Nesse contexto, pode-se interpretar que o papel do SRA na gravidade da infeção por SARS-CoV-2 depende menos da expressão da ECA-2 no aparelho cardiovascular e mais da expressão dele no epitélio respiratório. Isso pode justificar a não interferência na morbimortalidade por COVID-19 em usuários de IECA e BRA, bem como a falta de proteção para essa doença em tabagistas e pacientes com DPOC.
Além de as orientações terapêuticas serem parar de fumar e manter a medicação cardiovascular, o conhecimento da inter-relação da nicotina com a expressão de ECA-2 nas células do epitélio respiratório e sua interface com receptores de α7-nAChR sugere a possibilidade de ações terapêuticas para tratamento da COVID 19. O uso de antagonistas seletivos de α7-nAChR, como metilglicaconitina28 e α-conotoxina,29 pode alterar significativamente a expressão de ECA-2, podendo ser uma opção terapêutica para impedir a entrada de SARS-CoV-2 no epitélio das vias respiratórias. Futuros estudos deverão confirmar ou não essas hipóteses.
Footnotes
Fontes de financiamento
O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
Vinculação acadêmica
Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
Referências
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