Skip to main content
Arquivos Brasileiros de Cardiologia logoLink to Arquivos Brasileiros de Cardiologia
editorial
. 2020 Nov 1;115(5):807–808. [Article in Portuguese] doi: 10.36660/abc.20200104
View full-text in English

Reflexão sobre Conflitos de Interesses em Diretrizes Médicas

Editor: Max Grinberg1,
PMCID: PMC8452216  PMID: 33295441

A prescrição de um fármaco diretamente ao paciente, a captação do voluntário para uma pesquisa clínica, a palestra em um congresso da especialidade, a participação em um comitê elaborador de uma diretriz clínica, a supervisão em uma visita clínica com residentes, a opinião para os colegas em um cafezinho. Todas essas situações se caracterizam como interação humana, maior ou menor assimetria de conhecimento e influência de múltiplos interesses, em que o eventual privilégio de um pode provocar prejuízo de algum outro.

Dessa maneira, estabelece-se a potencialidade do confronto entre interesses,1,2 o que recebe a denominação de potencial conflito de interesses. O uso do termo “potencial” já traz a inquietude de uma possibilidade da condição humana que, contudo, não ocorreu, podendo nunca acontecer ou se materializar em uma recepção imperceptível ou emissão inconsciente.

A areia movediça está na própria essência da medicina, a necessidade de realizar um profissionalismo sob moldura ética, moral e legal. Isso demanda desdobramentos clínicos, técnicos, científicos e atitudinais sob forte indeterminação acerca da beneficência (conceitual) e do benefício (individual), da não maleficência (conceitual) e do não malefício (individual).

As diretrizes clínicas são ilustrativas do tema-dilema. Elas ganharam o status de recomendação de primeira ordem; assim, a confiabilidade é avalizada por sociedades de especialidade idôneas e servem de ponto de referência para críticas éticas. Se, por um lado, as diretrizes clínicas visam à excelência estética do T (símbolo da abrangência do saber na barra horizontal e da profundidade na barra vertical) em uma proporcionalidade atualizada de acordo com evidências de pesquisas clínicas, por outro lado, vivências profissionais e opiniões de peso, o cotidiano na beira do leito, destaca a sabedoria dos ajustes individualizados. Assim, a matéria-prima do pavio do potencial conflito de interesses é a evidência científica, mas quem costuma riscar o fósforo é a individualização.

Sobressai na elaboração das diretrizes clínicas a seleção colegiada da dimensão de efeito e da probabilidade de realização de métodos em doenças e circunstâncias. Os membros do comitê de elaboração precisam analisar as evidências de determinações recíprocas entre método e situação clínica.

Inclusões, exclusões e classificações prescritivas devem ser guiadas pela ideia da reciprocidade entre sal e água, ou seja, em qualquer local, a água dissolve o sal e o sal dissolve-se na água, desde que líquida, não cabendo a regra para gelo ou vapor d'água. Ao mesmo tempo, deve-se ter em mente que cada método diagnóstico, terapêutico ou preventivo representa, invariavelmente, um bastão, em que uma extremidade carrega beneficência e a outra, maleficência. Portanto, não existe iatrogenia zero para o paciente, as bulas assim ensinam.

Será que a manifestação de um conflito de interesses por parte do membro do comitê de elaboração de diretriz constitui desejável vacina moral? Creio que não. Uma coisa é a plateia calibrar os poros do seu filtro crítico sobre o que o palestrante afirma, outra coisa são as bases para o leitor de diretrizes clínicas supor vieses.

Do ponto de vista pragmático, não se pode ignorar que os critérios de qualificação da escolha dos especialistas para elaborar uma diretriz superpõem-se aos utilizados pela indústria para a ela se associar de alguma maneira. A ligação acadêmica, a produção científica continuada, o crédito entre os colegas são essências comuns. Em decorrência disso, é alta a chance de se pensar em um nome e colidir com algum potencial conflito de interesses. Posições radicais podem comprometer a seleção, algo como afunilar na direção dos mais inexperientes.

A bioética da beira do leito entende que a manifestação de um conflito de interesses no corpo de uma diretriz tem o único objetivo de afirmar: dou a minha palavra de honra que tenho tais potenciais teóricos, mas não os realizei.

É de se supor que coadores de responsabilidade da Sociedade Brasileira de Cardiologia precederam a leitura de uma nova diretriz clínica nos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, tais como a decisão sobre a necessidade de atualização/primeira vez, a seleção de nomes, a crítica do elaborado e a aprovação final. Por isso, o foco de confiança e a responsabilidade concentram-se na gestão societária.

As inquietudes da gestão podem ser simplificadas na tríade: não informação, informação enviesada e informação qualificada. A complexidade é que qualquer um desses pode ser objeto do conflito de interesses. Assim, escamotear uma novidade, forçar uma recomendação ou dar ênfase a uma evidência de fato endossável podem embutir interesses pessoais ou de indivíduos ligados.

A bioética da beira do leito prefere o foco na fidelidade à própria consciência no desempenho de funções sujeitas a imperfeições da condição humana.3 Evidentemente, fortes associações à indústria devem ser evitadas, dentro do conselho de que não basta ser honesto, é preciso evitar as dúvidas.

Não obstante, é capital considerar que o comportamento dos membros do comitê de elaboração de diretrizes será invariavelmente de responsabilidade para com a função em grupo, de interesse prioritário em prol do coletivo, de rejeição a qualquer expressão de autômato dentro do grupo, de respeito com crítica pelo coordenador-líder, de compasso entre as conclusões de pesquisas e as realidades da beira do leito; enfim, de liberdade e de independência bem sustentadas pela plataforma científica atualizada e validada.

Alguém pode conjecturar que seria ingênuo confiar no imperativo da consciência,4 que mesmo um especialista, um professor-doutor, qualquer jurado por Hipócrates e com um compromisso com a sociedade pela posse de um número de CRM, não pode deixar de ser arrastado pela superficialidade de um interesse espúrio quando dele é exigida a profundidade do seu saber e sabedoria. É contraponto válido; porém (sempre tem um porém), quem pode negar que a manifestação do conflito de interesses, não somente impossibilita definir os descontos necessários na recepção, como também não funciona como um “007” moral – licença para conflitar. Há suposições sobre um exagero estratégico, uma tendência ao emissor prover mais vieses para contrabalançar os descontos de recepção provocados pela manifestação dos conflitos de interesses. Por outro lado, pode inibir contraposições temendo enquadramento em realização de conflito de interesse.

Há 26 séculos, Eubulides de Mileto fez a pergunta: “Em que momento um monte de areia deixa de sê-lo quando se vai removendo grãos, ou um grão se torna um monte pelo acréscimo sucessivo?” Só haverá resposta de modo autoritário, se alguém estabelecesse um critério com algum tipo de força impositiva. Quanto de flexibilidade pode ser tolerável na opinião de um membro de comitê de diretrizes?

Dada a presunção de honestidade profissional dos sócios, que deve vigorar em uma sociedade de especialidade e a dificuldade de percepção de realizações de conflito de interesses em uma medicina contemporânea plena de indeterminações e de metamorfoses aceleradas, creio que o potencial conflito de interesses é parte indissociável da elaboração de qualquer diretriz clínica, que é impossível qualquer tipo de certeza de ausência da realização. Por isso, uma diretriz não é uma algema, mas uma bússola. Assim, ajustes individuais são bem-vindos.

Por isso, independentemente da manifestação dos interesses de cada membro do comitê de elaboração das diretrizes pertinentes ao documento, proponho uma manifestação ao início de cada diretriz: A Sociedade Brasileira de Cardiologia, desde a decisão da elaboração até a autorização de publicação, manteve inabalada a confiança na boa-fé dos participantes, a virtude que faz da verdade científica um valor para a condução das relações consigo mesmo e com os colegas e pacientes.

Referências

  • 1.1. Carliff RM. Conflicting information about conflict of interest. J Am Coll Cardiol. 2013; 61(11):1144-5. [DOI] [PubMed]
  • 2.2. Conti RC. Conflict of interest. Clin Cardiol. 2009; 32(12):666-7. [DOI] [PMC free article] [PubMed]
  • 3.3. Grinberg M. Conheço&aplico&comporto-me: identidade bioética do cardiologista. Arq Bras Cardiol. 2004; 83(1):91-5. [DOI] [PubMed]
  • 4.4. Rhodes R. Conscience, conscientious objections, and medicine. Theor Med Bioeth. 2019; 40(6):487-506. [DOI] [PubMed]
Arq Bras Cardiol. 2020 Nov 1;115(5):807–808. [Article in English]

A Reflection on Conflicts of Interest in Medical Guidelines

Editor: Max Grinberg1,

Prescribing a drug directly to the patient, recruiting a volunteer for a clinical research, lecturing at a specialty congress, participating in a committee that elaborates clinical guidelines, supervising a clinical visit with residents, giving your opinion for colleagues over coffee.

All of these situations are characterized by human interaction, greater or lesser asymmetry of knowledge, and multiple interests, where the possible privilege of one may cause damage to another.

Thereby, the potential for confrontation between interests is established,1,2 and this is called a potential conflict of interest. The use of the term “potential” brings about a possibility of the human condition that did not occur, and may never happen or materialize as an imperceptible reception or unconscious emission.

Quicksand is in the very essence of medicine: the need of professionalism under an ethical, moral and legal framework that demands clinical, technical, scientific and attitudinal actions under a strong irresolution about beneficence (conceptual) and benefit (individual), of (conceptual) (non-) maleficence and (individual) (non-) harm.

Clinical guidelines illustrate well the dilemma. They have gained first-rate recommendation status; their reliability is guaranteed by trustworthy specialist societies and serve as a reference for ethical criticism.

If, on the one hand, clinical guidelines aim at the esthetic excellence of the letter T—symbolyzing the comprehensiveness of knowledge in the horizontal bar and its depth in the vertical bar—in a proportion that follows evidence from clinical research, professional experiences and strong opinions, on the other hand, the bedside routine highlights the wisdom of individualized adjustments. The raw material for a potential conflict of interest is scientific evidence, but it is individualization that usually lights the match.

The collegiate selection of the effect dimension and the probability of carrying out methods in diseases and circumstances stand out in the creation of clinical guidelines. The steering committee members need to analyze evidence of reciprocal determinations between method and clinical settings.

Inclusions, exclusions and prescriptive classifications must be guided by the idea of reciprocity of salt and water, that is: no matter the conditions, water dissolves salt and salt dissolves in water—as long as in liquid state, not fitting for ice or water vapor. At the same time, it must be borne in mind that each diagnostic, therapeutic or preventive method invariably represents a stick that carries benefit in one end and harm on the other; there is no zero iatrogenesis for the patient, as the medicines' leaflets teach us.

Does the manifestation of a conflict of interest on the part of a member of a guideline committee constitute a desirable moral vaccine? I do not think so. The audience calibrating the pores of its critical filter on what the speaker says is one thing; the foundation for the reader of clinical guidelines to assume bias is another.

From a pragmatic point of view, one cannot ignore that the qualification criteria for the choice of specialists to develop a guideline overlap with those used by the industry to associate itself with it in some way. Academic liaison, continued scientific production, credit among colleagues are common factors. As a result, the chances of thinking about a name and stumbling with any potential conflict of interest are high. Radical positions can impair selection, narrowing it towards the less experienced.

Bedside bioethics understands that the manifestation of a conflict of interest in a guideline has the sole purpose of stating: “I give my word of honor that I have such theoretical potentials, but I did not put them to practice”.

One can assume that people help accountable at the Brazilian Society of Cardiology preceded the reading of a new clinical guideline in the Brazilian Archives of Cardiology, including the decision on the need for updating/first time, selection of names, criticism and final approval. So, the focus of trust and responsibility is on corporate management.

Management concerns can be simplified in the triad: absent information, biased information, qualified information. Any of these can be object of conflict of interest, hence the complexity. Hiding a novelty, forcing a recommendation or emphasizing endorsable evidence can embody personal interests or those of connected individuals.

Bedside bioethics prefers to focus on fidelity to one's conscience when performing functions subject to the imperfections of human condition.3 Of course, strong associations with the industry should be avoided, as only being honest is not enough; one must avoid doubts.

‘Nevertheless, it is essential to consider that the behavior of members of a guideline committee will invariably be responsibility of the group, with priority interest aimed for the collectivity, rejecting any automaton expression within the group, respecting the criticism by the lead coordinator, walking side to side with research findings and bedside reality; to sum up: freedom and independence well supported by the updated and validated scientific platforms.

One can guess that it would be naïve to trust the imperative of conscience4 that even an expert, a professor PhD, any juror of Hippocrates, committed to society by the possession of a medical register, cannot help but be dragged by the superficiality of a spurious interest when deep knowledge and wisdom is required of them. It is a valid counterpoint, but—and there is always a but—who would deny that the manifestation of conflict of interests not only does not allow the necessary discounts to be defined at the reception, but also does not function as a moral agent 007, bearing a license to conflict. There are suppositions of strategic exaggeration, a tendency for the issuer to provide more biases to offset the reception discounts caused by conflicts of interest. On the other hand, it can inhibit opposition by the fear that it might lead to a conflict of interest.

Eubulides de Miletus asked this question 26 centuries ago: At what point does a pile of sand cease to exist? When grains are removed? Or do grains become a pile by successive addition? The answer is only possible if we look from an authoritarian point of view, if someone establishes a criterion with some type of imposing force. How much flexibility can be tolerated in a guideline committee member's opinion?

Given the presumption of professional honesty by the partners, which should prevail in a specialty society, and given the difficulty in perceiving conflicts of interest in the contemporary setting of medicine, full of undetermined and accelerated metamorphoses, I believe that a potential conflict of interests is an inseparable part of the elaboration of any clinical guideline, and that any kind of certainty of its absence is impossible. Therefore, a guideline is not a handcuff, but rather a compass. Individual adjustments are welcome.

Therefore, regardless of the expression of interests of each member of the guideline committee pertinent to the document, I propose a manifestation at the beginning of each guideline: since the decision of creation until the authorization of this publication, The Brazilian Society of Cardiology kept the confidence in the good faith of participants, a virtue that makes scientific truth a value underlying the relationships with oneself and with colleagues and patients.


Articles from Arquivos Brasileiros de Cardiologia are provided here courtesy of Sociedade Brasileira de Cardiologia

RESOURCES